Mata-burros
Vivi numa azinhaga com um nome engraçado e extinto, onde passavam mais regos da chuva que carros e mais silvas que pessoas.
Do que me lembro, além de mim, havia sombra e muros velhos de quinta e a noção de que ali vivia gente conhecida que eu não tinha idade para saber quem era.
Na minha casa, na rua, sentava-me na gravilha empoeirada e agarrava-a. Sentia-a passar entre os dedos e principalmente na palma da mão, quente do Sol mas mais quente do que o Sol, mais próxima e com mais vida. Acho que foi aí, não sei bem quando, mas aos cinco ou seis anos, mais ou menos, que me apercebi (ou pressenti), com aquelas pedrinhas brancas na mão, que nunca me viria a sentir mal quando as pessoas me perguntassem, espantadas, como é que eu não me interessava por política e não via as notícias. Talvez eu seja ainda o mesmo. As tartarugas ninja e o Bugs Bunny continuam a fazer mais sentido na minha cabeça. - Agora não interessa.
Além de me sentar no chão, subia a um choupo alto que lá havia. - Não sei bem se era um choupo, não só por não me lembrar exactamente mas também por não saber bem os nomes das árvores com aquela idade. - Acho que era um choupo. O que me lembro é que o subia e que era fácil. Os ramos -degraus- tinham sido arquitectados à minha medida e, sem saber se o que tinha apoiado era a mão esquerda, o pé direito ou um joelho, deslizava pela árvore acima até à sua ponta magrinha se inclinar com o meu peso abraçado com força. Lá em cima era o céu. Acho que ainda não estava pronto, descia passado pouco tempo. Depois eram as formigas. Cócigas, como eu dizia e digo, comichões insuportáveis e dentadas furiosas de óleo a ferver. Sacudi-las, sacudi-las, olhar para dentro da roupa, sentar-me outra vez e vê-las misturar-se com as pedrinhas brancas, subir e descer, ficar cinzentas, aparecer e desaparecer.
Não me lembro quando foi que desapareceram para sempre.
Hoje, estou pronto para o céu e acho que não o vou voltar a viver. O meu peso dobra-me em vez do choupo, a azinhaga é uma rua de casas daquelas todas iguais e coladas umas às outras, com lugar para estacionar.
Nunca mais vi gravilha.
Dava tudo para que uma daquelas formigas aqui estivesse e me fizesse cócigas e mordesse até ao enfarte.
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