Lisboa, 2010
Não gostava especialmente de arte e odiava ler romances e aquelas merdas que os poetas escreviam em montinhos. Também nunca simpatizara muito com a música. Ouvia a RFM da mesma forma que lia o Correio da Manhã por odiar notícias.
Só havia uma coisa que o fazia viver intensamente para lá de si, sentir-se transcender as fronteiras do seu corpo e tornar-se um só com o mundo que o rodeava: eram aqueles momentos. Agachava-se nas escadas rolantes (ou, às vezes, num elevador) e apalpava com todos os seus sentidos o prazer de atar os sapatos sem perder tempo. - "Genial! Estou a atar os sapatos mas não paro de andar! A tecnologia é do caraças!" - Olhava para o relógio e para baixo, passara pouco tempo e ainda andara uns metros. Não valia a pena tentar conter o sorriso. Estava a acontecer e era do caraças.
Nessa altura, noutra parte da cidade, um cão magricelas roía, entretido, um osso da perna de Camões. Encontrara-o meio desenterrado, nas traseiras duma casa de fados inflacionados para turistas, algures no bairro alto, mesmo a pedi-las. Roía-o e sabia a osso.
Perfeito.
Alguns anos antes, os Tamagotchis já tinham passado de moda e a literatura portuguesa apresentava os sintomas de um Enfarte do Miocárdio. Ele não queria saber, era só um cão.
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