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Wednesday, January 31, 2007

Uma história medíocre

Morreu faz hoje 92 anos, mas nem isso imortaliza a sua história. Era mediano como tantos outros.
Era tão simplesmente mais uma vítima desse pão polvilhado de ambição dos verdes anos que traz consigo um intragável recheio a mediocridade.
Não foi o destino que quis, foi apenas uma sequência de eventos que determinou que fosse jornalista. Não era a vocação que o destacava do comum português da época, mas sim o privilégio de viajar por esse Portugal profundo, que havia cinco anos que nada tinha de país real, se é que alguma vez teve.
Foi então que, numa das suas viagens em reportagem, desta feita de regresso da Covilhã onde 262 trabalhadores de duas usinas de torrefacção de café da região entraram em greve durante dois dias e envolveram-se em confrontos com a Guarda nos dois dias seguintes, que aconteceu algo muito pouco extraordinário que fica a uma noite de insónia de não ser escrito.
Por muito que se deslocasse com uma periodicidade que envergonhava um ou outro duque ou duquesa ou até possivelmente um par de morgados, morria de medo desse gigante de ferro compartimentado que cuspia fumo com se de raiva se tratasse e cujo apito, anunciante da sua inexorável marcha, colocava em debandada o mais tranquilo dos animais.
Cada curva mais rápida contraía-o, apertando-o com força ora contra a extremidade da carruagem ora contra uma qualquer gorda desmedida que viajava com os seus seiscentos e cinquenta filhos e que o saudava com um sorriso babado que fazia lembrar pão
com manteiga. Muita manteiga.
A tranquilidade dos demais passageiros, inspirava-lhe tanta confiança como a que tinha nos republicanos que haviam tomado conta e tardavam em organizar-se. Contrariava o movimento do comboio com uma força hercúlea, mas insuficiente. Suava como o Luso nunca brotou água.
De facto, o fumo do charuto que o gentil senhor à sua frente lhe enviava propositadamente para a cara a um pulso de quinze segundos multiplicava a sua intranquilidade por doze.
E doze curvas depois o choro alternado de cada uma das seiscentas e cinquenta crianças agrediu-lhe o tímpano como o melhor pugilista da época. Levantou-se, limpou a gentil baba gentilmente cedida pela gentil senhora com o lenço que tinha no bolso e rumou (não, voou!)
à carruagem-bar.
Whisky.Um, dois, três. Os que fossem necessários.
Voltou como se nada se passasse e de facto dentro da sua cabeça não se passava muita coisa. Apagou o charuto do homem, sorrindo-lhe na cara. Faltaram-lhe mãos para bofetear todos os filhos, mas foi uma mãe respeitável por alguns segundos.
Sentou-se e olhou pela janela. O condutor teria mudado de atitude ou tinha-se reconstruído o veículo em que anteriormente circulava? A viagem suavizou-se de tal modo que encostou a cabeça para o lado, ameaçando fechar os olhos.
As curvas pareciam-lhe rectas e as rectas, banhos de água quente.
As restantes seis horas de viagem reduziram-se aos doze minutos em que esteve acordado à chegada.
A partir desse dia, a conta para deslocações que apresentava ao jornal todos os meses engordou substancialmente.
O preço da cura para o enfarte do miocárdio.

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