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amigos: Lembrei-me/ Chover no Molhado/

Monday, July 24, 2006

Quem conta um conto acrescenta-lhe uma bola de estrume

Nunca tinha parado para reparar na preserverança do escaravelho. O bicho empurrava uma bola de estrume, com dificuldade, só para a tornar maior e, eventualmente, engoli-la de uma só vez e explodir. Uma espécie de mentiroso.
Nunca tinha reparado porque aquela pequena batalha se travava com o enorme mar como pano de fundo. O mar dos navios fantasmas e dos afogados voadores, onde os peixes das profundezas sonham com um sítio chamado terra, onde humanos todos parecidos mas de espécies diferentes se entretêm a comer-se uns aos outros e a tudo o que conseguirem, e onde não faz sentido nenhum que existam escaravelhos a enrolar merda. Quando os peixes se perdem nestes sonhos, emprestam ao mar a cor preta da terra fértil e as nuvens, que já se não podem ver ao espelho, desfazem-se em água para ir averiguar o que se passa com a velha máquina reflectora.
Naquele dia os peixes não sonhavam e, obviamente, não chovia. Sem saber o que é que se passara para o fazer pela primeira vez, Eugénio inclinou-se para observar de perto o labor do pequeno coprófago e relembrou a história que uma sua avó lhe contara de uma cigarra que descera ao reino dos mortos para resgatar a sua amada e que, ao passar pelo purgatório, já havia encontrado um daqueles bicharocos, a rolar a sua bola de esterco colina acima. - Porra, que os sacanas dos bichos são velhos comó caraças!
Eugénio era payador, mariachi, saltimbanco, artista de rua, o que quer que lhe chamassem.
Os seus únicos companheiros de sempre, que lembrava junto a si desde que se lembrava do que quer que fosse, eram a sua guitarra e a sua trança e a paisagem que tinha, impressa nos olhos, do mar. Uma espécie de promessa de que, onde quer que fosse, nunca o perderia de vista, para que nada de inesperado lhe acontecesse.
Por esta altura, o escaravelho tinha menos de metade do tamanho da bola de estrume e, ao empurrá-la, apoiado nas patitas de trás, caía frequentemente de costas, deixando-se a espernear por uns segundos.
Eugénio inclinou-se mais, para ver melhor. Do alcance da sua vista fugiu qualquer mancha azul de mar e o horizonte encheu-se-lhe do castanho-preto da terra. Quase sem dar por isso, quase voluntariamente, Eugénio sentiu uma picada fria e aguda, a duas vozes de soprano, no peito e na cabeça e, quando se lembrou de levantar os olhos para procurar o mar, já estava morto, de bruços, em cima do escaravelho e de trombas mergulhadas na merda.
O som da caixa da guitarra que trazia às costas foi a última coisa que se ouviu e foi levado pelo vento a muitos sítios cheios de muitas pessoas que, claro, não o compreenderam e que, ainda hoje, não fazem ideia de porque é que está a chover.

Boas férias, amigos, não andem à chuva e atenção ao enfarte do miocárdio.

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